Delphinus


... the Delphienus heit
Up in the aire.[i]
Ane schort Poeme of Tyme, de James I


DELPHINUS

É a constelação do Golfinho ou Delfim, chamado Dauphin na France, Delfino na Itália, Dolphin nos países anglófonos, e Delphin na Alemanha: todos esses nomes derivados do grego Δελφίς e Δελφίν, transcrito pelos romanos como Delphis e Delphin. Este último nome continuou em uso no inglês ao longo do século XVII, e foi retomado por Proctor em sua lista de constelações reformadas em fins do século XIX. Chaucer, em sua House of Fame, usou Delphyn, e em épocas posteriores a ele, encontramos Dolphyne.
A constelação do Golfinho, nos mapas de Hevelius

Atualmente é uma das menores constelações, mas originalmente pode ter incluído as estrelas que Hiparco destacou para formar a constelação do Pequeno Cavalo; e em toda a literatura astronômica manteve seu título e forma atuais, com muitas e variadas histórias associadas, pois seu homônimo sempre foi considerado a mais notável das criaturas marinhas.
Golfinho, nos mapas de Ignace Pardies

Na Grécia, ele também era Ἵερος Ἰχθύς, o Peixe Sagrado, pois essa criatura tinha tanto significado religioso lá quanto o peixe mais tarde passou a ter entre os primeiros cristãos; e era o emblema celestial da filantropia, não só pelas histórias clássicas ligadas ao seu protótipo, mas também pela devoção deste último a sua prole. Deve ser lembrado que nosso golfinho estelar é representado por um cetáceo comum, Delphinus delphis, de águas atlânticas e mediterrâneas, não a Coryphaena tropical[ii] que o Dourado representa. Ovídio, designando-o como clarum sidus (astro brilhante), personificou-o como Anfitrite, a deusa do mar, porque o golfinho a induziu a se tornar a esposa de Netuno, e por este serviço, diz Manílio:

eleva-se do mar o Golfinho,
glória do oceano e do céu, consagrado em ambos.[iii]

O Golfinho, no Firmamentum Firmianum de Corbiano Thomas

Desta história, a constelação veio a ser conhecida como Persuasor Amphitrites (Persuasor de Anfitrite), bem como Neptunus e Triton.
Golfinho, representado por John Bevis

Em Cícero ele aparece como Curvus, um adjetivo que apropriadamente foi usado para descrever a forma da criatura em várias épocas,[1] até o “delfins curvados” no quadro que Milton pintou da Criação.[iv] O Currus usado por Bayer é meramente o nome empregado por Cícero com um erro tipográfico, pois ele o explica com Ciceroni ob gibbum in dorso;[v] mas ele também tinha Smon nautis, e Riccioli Smon barbaris, que parecem provir de Simo, de Nariz Achatado, termo que os velhos marinheiros usavam para denominar o golfinho, segundo Plínio.
O Golfinho se encontra no centro desse mapa feito por Andreas Cellarius.
Note abaixo deste duas constelações desusadas: o Rio Tigre e, como afluente, o Rio Eufrates.


Outro título favorito era Vector Arionis (Condutor de Árion), da fábula grega que atribuía ao golfinho o resgate de Árion em sua viagem de Tarento a Corinto[vi] — uma variação do mito muito anterior do deus-sol Baʿal Hammon. Daí os versos de Henry Kirke White:

lock’d in silence o’er Arion’s star,
The slumbering night rolls on her velvet car.[vii]

Em continuação à história grega de Árion e sua Lira surge a denominação Μουσικόν ζώδιον, o Musicum signum dos romanos; ou isso pode vir do fato mencionado em Os Fastos de Ovídio, que a constelação supostamente conteria nove estrelas, o número das Musas, embora Ptolomeu prosaicamente tenha catalogado 10; Argelander, 20; e Heis, 31.
Parte da carta celeste de R. Brookes, mostrando o Golfinho entre a Águia e o Pequeno Cavalo.

Riccioli e Lalande citam Hermippus como nome alternativo para a constelação,[viii] e Acetes em referência ao pirata timoneiro que protegeu Baco em sua viagem a Naxos, onde este encontrou Ariadne e a desposou; já para outros ele representava Apolo em retorno a Crissa ou levando Castalius de Creta.[ix]

Os hindus, de quem os gregos supostamente o teriam tomado emprestado, — embora o contrário disso possa ter sido o caso, — conheciam-no como Shishumara ou Śiśumāra, por vezes transcrito como Zizumara, Toninha, também atribuída a Capricórnio e ao Dragão. E eles localizavam aí o the 23.o nakshatra,[x] Śrāviṣṭha, o Mais Rápido, também denominado Dhaniṣṭha, o Mais Rico. Os regentes desse asterismo seriam as divindades conhecidas como Vasus (Brilhantes ou Provedores de Riquezas), cujos símbolos são o Tambor e a Flauta; a estrela β marcaria a junção desse nakshatra com o seguinte, Shatabhisha.

Brown acreditava que ela pudesse corresponder ao eufrateano Makhar, embora esse título também seja reivindicado para o Capricórnio.

Al-Bīrūnī, dando-lhe o título arábico al-Qaʿūd, o Jovem Camelo, afirma que os primeiros cristãos — os membros das seitas melquita[2] e nestoriana — consideravam-na a Cruz de Jesus transferida aos céus após a crucificação; mas aos dias de Qazwīnī os eruditos da Arábia chamavam α, β, γ e δ de al-ʿUqūd al-Ṣalīb,[xi] as Pérolas e Gemas que adornam a Cruz; a estrela ε, em direção à cauda, era al-ʿAmūd al-Ṣalīb, o Pilar da Cruz. Mas os astrônomos arábios adoraram a figura grega como seu Dulfīn, que um de seus cronistas decreveu como “um animal marinho amistoso ao homem, que costuma atender a navios para salvar os marinheiros que estão se afogando”.
O Golfinho era representado como um monstro marinho, em certas edições
do Descrição das Estrelas Fixas, de al-Ṣūfī.


As Tábuas Alfonsinas de 1545 dizem sobre o Golfinho: Quae habet Stellas quae sapiunt naturam,[xii] uma expressão um tanto enigmática, mas comum à tradução de 1551 do Tetrabiblos, no qual significa que as estrelas supostamente regeriam os nascimentos humanos e influenciariam sobre a personalidade, — naturam. Ptolomeu, como é mostrado nesses Quatro Livros, acreditava na influência genetlíaca de certas estrelas e constelações, das quais esta parece ter sido uma especialmente notável.

O Golfinho fica a leste da Águia, à borda da Via Láctea, ocupando, juntamente com outras figuras aquáticas ao seu redor, a porção do céu que Arato denominava de Água.

Caesius situou aqui o Leviatã do Salmo 104;[xiii] Novidius, o Grande Peixe que engoliu Jonas; mas Julius Schiller nomeou algumas de suas estrelas como as Talhas de Água de Caná. Suas quatro estrelas mais brilhantes estão dispostas sob a forma de um pequeno losango ou diamante, que veio a ser popularmente conhecido como Job’s Coffin (Caixão de Jó).

Os chineses denominavam essas quatro estrelas principais juntamente com ζ de Hù Guā (a Cabaça).

α, 4, amarelo pálido; β, Binária, 4 e 6, esverdeada e escura.

Os estranhos nomes Sualocin e Rotanev apareceram pela primeira vez atribuídos a estas estrelas no Catálogo de Palermo de 1814. Por muito tempo eles foram um mistério para todos, bem como aparentemente um grande enigma para Smyth, o qual talvez ele nunca tenha resolvido, embora fosse muito íntimo da equipe do Observatório de Palermo. Webb, entretanto, descobriu sua origem ao reverter as letras que compunham o nome de Nicolaus Venator, a forma latinizada de Niccolo Cacciatore, nome do assistente e sucessor de Piazzi. Mas Frances Rolleston, em seu peculiar livro Mazzaroth, considerado uma autoridade em certos círculos, escreveu que eles derivavam, um do

arábico Scalooin, rápido (como o fluxo da água);

e o outro do

siríaco e caldeu Rotaneb, ou Rotaneu, que corre rapidamente (como água numa calha).

Porém nenhuma parte dessa afirmação parece ter fundamento. Ainda assim, Burritt escreveu esses nomes como Scalovin e Rotanen.
Golfinho, no mapa de Burritt

No século XIX, suspeitava-se que α variasse em até meia magnitude ao longo de um período de 14 dias.[xiv] Essa variabilidade não foi confirmada nos dias atuais, mas surpreendentemente descobriu-se que a estrela possui 6 companheiras próximas, a maioria das quais apenas coincide na linha de visada.

β é um par muito próximo, separado por 0.57″ em 2006, segundo um ângulo de posição de 3.1°, numa órbita rápida de período igual a 26.65 anos.[xv] Outras companheiras ópticas, com magnitude entre 11 e 13, foram posteriormente encontradas separadas por poucas dezenas de arcossegundos, situadas na mesma linha de visada.

γ, dupla,

embora não tenha um nome próprio, é conhecida por ser uma bela binária de 4.a e 5.a magnitudes, separadas por 8.9″, segundo um ângulo de posição de 265°; o ajuste à órbita indica um período longo de 3249 anos em uma órbita de excentricidade 0.88. Os componentes têm tonalidade dourada e verde azulada, formando um alvo excelente para a observação em pequenos instrumentos.

ε, 4.0,

embora se encontre próxima à barbatana dorsal da nossa atual figura estelar, portou por muito tempo o nome comum Deneb, de al-Dhanab al-Dulfīn, a Cauda do Golfinho. No Calendarium de al-Akhṣāṣī al-Muwaqqit, esse nome está corrompido para Dzaneb al Delphin, traduzido para o latim como Cauda Delphini. Em 2017, o WGSN da União Astronômica Internacional usou parte desse nome para batizá-la oficialmente como Aldulfin.

Mas na Arábia ela também foi al-ʿAmūd al-Ṣalīb, marcando o Pilar da Cruz. Na China, ela era a primeira estrela do asterismo Bài Guā, a Cabaça Podre, do qual as demais estrelas eram η, θ, ι e κ.

Ao longo do século XIX, a comparação entre os brilhos relativos de β, γ, δ e ε variou bastante — a começar pelas observações de Gould em Albany em 1858, e em Córdoba entre 1871 e 1874, sugerindo que as quatro fossem estrelas variáveis. Porém não há informação atual que sustente isso.

ρ Aquilae, 4.9, originalmente parte da constelação da Águia, migrou em 1992 para a constelação do Golfinho devido a seu movimento próprio. Ela é informalmente conhecida nas listas de nomes estelares como Tso Ke, do cantonês Zó Kěi, a Bandeira Esquerda, asterismo do qual ela faz parte. Em mandarim, esse mesmo asterismo é Zuǒ Qí, de igual significado, e ρ Aquilae é Zuǒ Qí Jiǔ, a Nona Estrela da Bandeira Esquerda.

A estrela 18 Delphini foi batizada de Musica ao fim da primeira campanha NameExoWorlds promovida pela União Astronômica Internacional em 2015. Seu planeta recebeu o nome Arion. Ambos os nomes foram propostos por alunos do Clube de Ciências de uma escola de ensino médio da prefeitura de Tokushima, no Japão, e fazem menção à mitologia da constelação, posto que Árion teria sido salvo por golfinhos ao atraí-los com sua música.


Notas de Rodapé (do texto original)


[1] Huet, em suas anotações a Manílio, citou muitos exemplos do uso deste termo pelos romanos. Sobre isso Burman escreveu Perpetuam hoc Delphinum Epitheton (Este é o perpétuo epíteto do golfinho). [Nota do tradutor: Allen dá a entender que a frase latina seria de Huet, mas parece vir dos comentários de Burman a Ovídio, segundo a nota 410 em The Aldine Edition of the British Poets, 1832, Londres: William Pickering, pg. 90].
[2] Estes Melquitas, ou Reais como o nome indica, compunham a igreja grega, cujo líder espiritual era o Czar da Rússia, sucessor do Patriarca de Bizâncio. [Nota do tradutor: melquita é um nome genérico para algumas igrejas cristãs orientais. Algumas não reconheciam o Czar como autoridade].


Notas Explicativas da Tradução


[i] Excerto dos vv. 13-14, do poema Ane schort poeme of tyme, escrito pelo rei James I. Em tradução aproximada: “O Golfinho alto / no céu”.
[ii] Essa observação faz mais sentido para o leitor de língua inglesa, pois a Coryphaena é denominada dolphinfish em seu idioma.
[iii] Excerto dos vv. 399-400 do Livro I, do Astronomicon de Manílio. Tradução de Marcelo Vieira Fernandes (in Manílio — Astronômicas: Tradução, Introdução e Notas, Dissertação de Mestrado, PPG Letras Clássicas, Universidade de São Paulo, 2006). Compare com o texto latino: “surgit Delphinus ad astra, / oceani caelique decus, per utrumque sacratus”. Allen usou a tradução versificada feita por Thomas Creech que não corresponde estritamente ao original grego devido às demandas da versificação: “Next rais’d from Seas the Dolphin’s Tail appears, / The Glory of the Floud and of the Stars” (Em seguida, erguida do mar a Cauda do Golfinho aparece / A Glória do Dilúvio e das Estrelas).
[iv] Referência ao verso 410, do Canto VII, de Paraíso Perdido, de Milton. No original: “And bended dolphins play” (e delfins curvados brincam).
[v] Em tradução aproximada: “de Cícero, devido à corcova nas costas”.
[vi] A lenda conta que Árion era insuperável em sua arte de tocar a lira. Em visita a Tarento, recebeu um grande prêmio e retornava para Corinto quando seu navio foi atacado por piratas. Condenado a saltar ao mar, Árion fez um último pedido: tocar sua lira pela última vez. Ele cantou em louvor a Apolo e sua canção atraiu um grande número de golfinhos, um dos quais o resgatou quando ele saltou ao mar.
[vii] Versos 79-80 do poema Clifton Grove — a Sketch, escrito por Henry Kirke White aos 16 anos de idade. Em tradução aproximada: “trancada em silêncio sobre o astro de Árion / a noite adormecida rola em seu carro de veludo”. Vários comentaristas apontam que a expressão “Arion’s Star” se refere à constelação do Golfinho, com base em Os Fastos de Ovídio. Todavia, além de não se tratar de uma constelação muito relevante no céu, não há outras referências a constelações no poema, fazendo que com o destaque ao Golfinho pareça improvável. Talvez por isso em Poems of Places: An Anthology in 31 Volumes, editado por Henry Wadsworth Longfellow, esta expressão apareça corrigida para “Orion’s Star”. Por outro lado, Árion é um aclamado poeta na lenda grega, e o jovem Kirke White pode ter usado essas estrelas justamente por se autoidentificar.
[viii] Hermipo (do grego Ἕρμιππος, formado por Ἑρμῆς +‎ ἵππος), o cavalo de Hermes. Lalande (in L’Astronomie, vol. 1, 1771, Paris: Chez la Veuve Desaint, p. 270) atribui o termo a Plínio o Jovem.
[ix] Na mitologia, Castalius seria filho de Apolo e pai de Delfo, que teria viajado de Creta a Crissa e aí fundou um culto a Apolo. Outras versões indicam que Apolo montava o dorso de um golfinho quando conduzia Castalius, donde o epíteto Apollo Delphinius.
[x] Para Allen, trata-se do 22.o nakshatra. Veja a nota [xi] em Andromeda para entender a variação na numeração dos nakshatras.
[xi] Ideler (in Untersuchungen über den Ursprung und die Bedentung der Sternnamen, pg. 110) transcreveu o primeiro desses nomes como al-ʿAqūd, por interpretá-lo como plural de ʿUqdah. Em suas próprias palavras: “Ich nehme hier عقود für den Plural von عقدة, Okda, Knoten, und verstehe darunter die Verbindung der Querhölzer des Kreuzes. Man kann es aber auch, wie Hr. Beigel bemerkt, für den Plural von عقد, Ikd, ansehn. Dann bezeichnet es die Perlen und Steine (baccae), womit das zum Schmuck dienende Kreuz besetzt wird” (Aqui, tomo عقود como o plural de عقدة, ʿUqdah, nó, e com isso quero indicar a união das barras transversais da cruz. Mas também se pode tomá-lo, como aponta o Sr. Beigel, como o plural de عقد, ʿIqd. Nesse caso, denotaria as pérolas e contas com as quais a cruz é decorada).
[xii] Em tradução aproximada: “que possui estrelas que conhecem a natureza”.
[xiii]Ali andam os navios; e o leviatã que formaste para nele folgar”, Salmos 104:26, na tradução Almeida Corrigida Fiel.
[xiv] A origem dessa suspeita é o artigo de A. Auwers, Resultate aus Beobachtungen veränderlicher Sterne, Astron. Nachr., 50, 106 (1859). Em 1948, a estrela foi incluída como suspeita de variabilidade no General Catalogue of Variable Stars, sendo alvo de monitoramento mais regular desde então. Porém, a amplitude de variação de magnitude registrada nesse catálogo corresponde a apenas 0.03, que não corrobora a informação de Auwers.
[xv] In A. Alzner, Orbital elements of 9 visual double stars, Astron. & Astroph. Supp. Ser., 132, 253 (1998).

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