O número delas, numa conta devida,
É vinte estrelas mais oito em seguida.
Verso arábico quotado por al-Bīrūnī.
AS MANSÕES LUNARES
tiveram, no passado, um importante papel na astronomia observacional, especialmente naquela praticada na Arábia, China, Índia, Khiva — a antiga Corásmia — e em Bucara — a antiga Sogdiana; não obstante, pesquisas posteriores mostraram que elas estavam bem estabelecidas no vale do Eufrates, no Egito copta e na Pérsia, possivelmente se originando no primeiro desses locais.
Situam-se, em sua maioria, ao longo do equador celeste ou no zodíaco, variando em extensão, embora teoricamente cada uma deveria açambarcar o percurso diário da Lua, em sua órbita, projetado na esfera celeste. Elas por vezes contavam-se em vinte e sete, mas usualmente vinte e oito, tendo o próprio mês lunar entre vinte sete e vinte oito dias, e possivelmente antecederam em muito as constelações gerais ou mesmo o zodíaco solar. Parecem estar nas mais antigas tentativas de ordenação de uma ciência estelar; de fato, entre os corasmianos, aos quais al-Bīrūnī atribuiu um grande conhecimento acerca das estrelas, um astrônomo era denominado Akhtar Wēnīk, o Observador das Estações Lunares; e têm sido largamente usadas, há muitas eras, pela Astrologia, bem como na antiga poesia e prosa, e até mesmo na decoração arábica.
Seu simbolismo astrológico era variado: onze eram consideradas auspiciosas, dez eram vistas de forma oposta, e sete teriam influência incerta; mas cada uma delas, ao menos na Índia, estava associada a uma ocorrência da vida. Sua antiguidade é comprovada pelo fato de que lá, e provavelmente noutros lugares, a lista começava com as Plêiades, quando essas estrelas marcavam o equinócio da primavera, embora isso tenha mudado em torno do início da nossa era, devido à precessão, para estrelas em Áries, o 27ọ da série inicial, e ainda o fato de que muitas de suas denominações se encontrar nos livros mais antigos da China, alegadamente datados de, pelo menos, 2500 aC.
Conquanto estes asterismos lunares, em geral, concordem com respeito às suas estrelas componentes, — dezoito são coincidentes, — alguns, entre os hindus e os chineses, situavam-se na direção de nossas conhecidas Andrômeda, Águia, Boieiro, Taça, Golfinho, Hidra, Lira, Órion e Pégaso, fora do curso lunar. Tampouco são suas denominações similares, exceto as das 16.a, 17.a e 28.a na China e na Arábia; mas Whitney, nosso grande especialista em Sânscrito, pensava que isso dificilmente poderia ser fortuito e alegou, deste e de outros pontos de semelhança, que se tratava de “três formas derivadas do mesmo original”.
Elas têm sido objeto de muita discussão [1], mas não se chegou ainda a nenhum acordo substancial quanto à data da sua constituição ou a seu local de origem. O resumo da argumentação de Whitney aparece em em sua obra Lunar Zodiac [i], sendo sua conclusão que as estações lunares foram adotadas pela Índia, e talvez por todos os demais lugares, da Mesopotâmia, sua terra natal.
Biot, no começo do século XIX, afirmou que elas tivessem origem chinesa, e Sedillot, que elas viessem da Arábia; mas Clerke considera a Índia como sua fonte, e que elas foram pela primeira vez publicadas na Arábia, nos Elementos de Cronologia e Astronomia [ii] de al-Farghānī, durante o califado de al-Maʾmūn, no começo do século IX, quando as criações hindus na arte, literatura e ciências eram atentamente acompanhadas pelos arábios. Ainda assim, no ano 1000, al-Bīrūnī escreveu, em Índia, acerca dos astrônomos daquele país:
Eu nunca me deparei com qualquer um deles que conhecesse de cor as estrelas individuais das estações lunares e fosse capaz de apontá-las para mim com os dedos.
Os hindus conheciam-nas como Nakshatras, Asterismos, os Jufūr [iii] de al-Bīrūnī, e consideravam-nas importantes em sua adoração e selecionavam de sua lista os nomes que usavam para os meses; mas, embora de uma forma ou outra eles fossem muito antigas na Índia, não parecem ter sido plenamente reconhecidas lá até o século VII ou VIII antes de Cristo, quando eles apareceram nos Brâmanas.
Ao contrário de suas contrapartidas na Arábia e China, cada uma parece ter sido representada por alguma figura especial, que não guardava qualquer associação com seu nome.
Na Arábia, elas eram al-Nujūm al-Akhdh, as Estrelas Tomadoras [iv], e al-Ribāṭāt [v], as Hospedarias, embora fossem mais conhecidas como al-Manāzil al-Qamar, as Mansões, ou Aposentos, da Lua; significando manzil, no singular, a parada que o camelo e seu condutor fazem ao meio-dia no deserto. Os leitores de Ben Hur recordar-se-ão disto em conexão com Baltasar, o egípcio, no encontro dos Reis Magos em sua busca por Aquele “que nasceu rei dos judeus”, após terem visto
sua estrela no leste, e seguido para adorá-lo.
Elas são mencionadas na décima sura do Alcorão, onde, referindo-se à Lua, é dito que Deus
designou suas estações, para que saibais o número de anos e o cálculo do tempo; [vi]
mas muito antes do Profeta, os autores do Enûma Eliš e da Gênesis escreveram de modo similar; enquanto no salmo 104, aquele nobre salmo sobre a Natureza para o domingo de Pentecostes, lemos:
[Ele] designou a lua para as estações. [vii]
Na China, elas eram Xiù [viii], as Hospedarias, começando a série com Jiǎo [ix], — α e ζ Virginis, — no equinócio de setembro; e alguns estão inclinados a considerarem-nas não somente como divisões lunares, mas também como pontos determinantes em referência aos movimentos do Sol e dos planetas. Diferentemente, no entanto, das divisões análogas em outras nações, elas situavam-se geralmente ao longo do equador. Nas lendas daquele país, elas eram os representantes celestes de vinte e oito célebres generais.
Elas também foram introduzidas no Japão numa época remota, e o cronista da viagem de Magalhães, em 1521, descobriu que eram familiarmente usadas no arquipélago malaio, e sua influência astrológica bem reconhecida.
Esses asterismos lunares hindus, árabes e chineses já de há muito são conhecidos por nós, mas os equivalentes persas só mais recentemente foram encontrados no Bundahishn, e Brown apenas há pouco publicou transcrições e traduções das denominações caldeias, corásmias e sogdianas, — sendo al-Bīrūnī a fonte dessas duas últimas, — bem como seus significados em copta e persa. Seus nomes e localizações são apresentados em conexão com suas estrelas componentes ao longo deste trabalho, e foram cartografadas em detalhe por Williams e por Newton.
Outras divisões do céu, de certo modo análogas a essas, foram os Decanos (ou Decanatos) dos caldeus, egípcios e gregos, “faixas de estrelas estendidas através dos céus, cujos levantes se seguiam uns aos outros a cada 10 dias, mais ou menos”, mas tendo muito maior extensão ao norte e ao sul do que as mansões lunares, e sendo trinta e seis em número, em vez de vinte e oito. Clerke escreveu acerca deles:
Os caldeus elegeram três estrelas em cada signo como “deuses conselheiros” dos planetas. Estes eram chamados pelos gregos de “decanos”, porque cada um presidia sobre dez graus da eclíptica e dez dias do ano. Concebia-se que o colégio de decanos, em seus levantes e poentes anuais, se movia num “circuito eterno” entre as regiões infernais e supernais.
São mencionados por Manílio como Decania, por outros como Decanica, Decane, Decanon, Degane, Deganae e Decima; enquanto os regentes dos decanatos eram conhecidos como Decani e seus nomes foram preservados para nós por Júlio Fírmico Materno, o prosador do reinado de Constantino. Eles encontram-se representados em zodíacos antigos nas paredes de templos e monumentos astrológicos no Egito, e provavelmente também em outros locais.
Notas de Rodapé (do texto original)
[1] Os professores Whitney e Newton fizeram o que foi possível para elucidar este assunto em todas as suas minúcias em seu artigo de 1858 no Journal of the American Oriental Society sobre o Sūrya Siddhānta, o Tratado do Sol, o mais importante livro astronômico da Índia, que os hindus alegam ter origem divina, embora al-Bīrūnī assevere ter sido composto por Lāṭa. (Nota do Tradutor: Trata-se de Lāṭadeva, astrônomo hindu que viveu em torno do ano 505 dC).
Notas Explicativas da Tradução
[i] Aparentemente, Allen encurtou o nome completo da obra de Whitney, que se chama On the Lunar Zodiac of India, Arabia and China.
[ii] Esta obra é conhecida por vários nomes na própria língua árabe: Kitāb fī jawāmiʿ ʿilm al-nujūm, Kitāb jawāmiʿ ʿilm al-nujūm wa uṣūl al-ḥarakāt al-samāwīya (Book of generalities of astronomy and bases of celestial motions), Kitāb fī uṣūl ‘ilm al-nujūm e Kitāb al-hay’a fī fuṣūl al-thalāthīn.
[iii] Eduard Sachau, tradutor da obra Vestiges of the Past de al-Bīrūnī, anota à pg. 371 que esta palavra é o plural do termo Jafr, cujo significado não parece estar dicionarizado, embora se relacione à astrologia hindu, provavelmente alguma subdivisão das mansões lunares.
[iv] Allen o traduz como the Stars of Entering, mas não está claro o que isso quer dizer, especialmente no contexto de mansão lunar. A palavra árabe اخذ, akhdh, presente no nome al-nujūm al-akhdh, têm o significado geral de “ter em mãos”, “tirar”, “receber”, “tomar”, “capturar”, “manter sob a esfera de influência”, entre outros, que parece indicar como o grupo de estrelas momentaneamente recebe ou toma posse da Lua enquanto esta se move em sua órbita projetada na esfera celeste. A tradução que me parece mais adequada foi “Estrelas Tomadoras”, devido à ampla gama de significados comuns entre o verbo português tomar e o radical árabe akhdh. Outras possíveis traduções, menos satisfatórias, seriam “Estrelas Acipientes”, “Estrelas Admitentes” ou “Estrelas Anfitriãs”.
[v] No texto original, Allen usou al-Ribāṭat. Lane (pag. 1014) registra رِبَاطَات (al-Ribāṭāt) com sentido similar: hospedagem para viajantes e seus animais.
[vi] Alcorão, décima sura, versículo 5. Traduzido livremente da sentença quotada por Allen, dado que a tradução conhecida em Português considera que o versículo se refere a estações do ano, e não a mansões lunares. Outras traduções do Alcorão consultadas, para língua inglesa, igualmente confundem essa questão. Apenas a tradução feita por Edward E. H. Palmer explicitamente menciona mansões lunares; as demais parecem confundir o conceito com fases da Lua ou aludir às estações tanto da Lua quanto do Sol.
[vii] Salmos 104:19, na versão da tradução Almeida Corrigida Fiel.
[viii] Allen não menciona qual sistema de transliteração usa para os nomes chineses. Considerando a época em que seu livro foi escrito, poderia ser o sistema de Wade-Gilles, mas seus termos contém sílabas aparentes que não figuram nessas tabelas. Para as mansões lunares, Allen usa Sieu, que seria Hsiu na transliteração Wade-Gilles (宿). Na tradução, adaptamos todos os termos à transliteração Pinyin, sempre que possível.
[ix] Em tabelas de transliteração mais modernas: Jiǎo (角), segundo a página da International Dunhuang Project. A diferença deste para o nome apresentado por Allen, Kio, aparentemente colhido na obra Über die Zeitrechnung der Chinesen, pg. 298, de Ideler (1839), o qual por sua vez se baseia em lista de Gaubil (Traité de la chronologie chinoise, 1814), pode ser atribuída apenas a diferenças de transliteração.
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