Corvus


Logo em seguida, arrastada nos ares,
Alço vôo e sou dada a Minerva,
Como companheira inocente. [i]
Metamorfoses, de Ovídio.


CORVUS

Para nós, bem como para os italianos, é Corvo; os franceses o chamam de Corbeau; os espanhóis, de Cuervo; e os ingleses, de Crow. Mas na Inglaterra de Chaucer ele era Raven (Gralha), e os alemães ainda o denominam Rabe, de mesmo significado.

O Corvo tenta beber da Taça, mas as ondulações da Hidra o impedem.

Embora atualmente seja encontrada por volta de 20° de declinação sul, há 4000 anos ela era dividida ao meio pelo equador celeste. Ela contém apenas 15 estrelas visíveis a olho nu, segundo Argelander, — 26 nos cálculos de Heis, — e ainda assim era uma constelação bem conhecida entre os gregos e romanos, sempre mais ou menos associada à Taça e à Hidra, em cujo dorso repousa. Ovídio contou sobre essa combinação em Os Fastos:

Continuata loco tria sidera, Corvus et Anguis
et medius Crater inter utrumque iacet;[ii]

mas embora sejam sempre representadas assim, as três constelações já de longo tempo têm sido catalogadas separadamente.

Os gregos a chamavam de Κόραξ, Gralha; e os romanos, Corvus. Manílio designou-a como Phoebo Sacer Ales, e Ovídio como as Phoebeïus Ales, pois a mitologia consagrava este pássaro a Febo Apolo, em conexão com suas funções proféticas e devido a ele ter adotado sua forma durante o conflito dos deuses com os gigantes.

Corvus, no Uranometria de Bayer

Ovídio, narrando nas Metamorfoses a história de Coronis e sobre sua infidelidade a Apolo,[1] diz que quando o pássaro relatou a seu mestre essas desagradáveis notícias teve sua antiga tonalidade prateada modificada para o atual preto, e assim Saxe conclui a história:

Voltou-se então para o Corvo:
“Infame e vil a verdade
Que me trouxeste; não mais!
Tua palra rume ao Hades

E lá Plutão que perturbes.
Cá não retornes, cagueta!
Doravante por teu ato
Terás a plumagem preta!” [iii]

Essa história deu origem ao título estelar Garrulus Proditor (Traidor Tagarela).

Outra versão da lenda aparece em Os Fastos — a saber, que a ave, sendo enviada para buscar uma taça de água, vagabundeou ao redor duma figueira até que o fruto amadurecesse, e então retornou ao deus com uma cobra d’água em suas garras e uma mentira em sua boca, alegando que a cobra fora a causa de seu atraso.[iv] Como punição, ele ficou permanentemente preso no céu com a Taça e a cobra (nossa Hidra); e, assim inferimos, condenado à sede eterna pela tutela que a Hidra exerce sobre a Taça e seu conteúdo. De tudo isso vieram outros nomes poéticos para o nosso Corvo — Avis Ficarius, a Ave da Figueira; e Emansor, termo usado para designar aquele que ultrapassa o tempo permitido; e uma crença, no folclore antigo, de que apenas esta entre as aves não leva água para sua prole.

No Atlas de Bode, vê-se claramente o Corvo e a Taça sobre a Hidra.

Florus [v] denominou-a Avis Satyra, a Ave dos Sátiros, e Pomptina, da vitória de Valério com o auxílio de uma gralha nos Pântanos Pontinos.[vi]

Esta ave e um asno aparecem juntos em uma moeda de Mende, na Macedônia, o que é interpretado como uma referência ao pôr quase simultâneo das constelações do Corvo e de Câncer, pois o asno era sempre associado a essa última no Ὄνοι, ou Asini, de suas estrelas. [vii]

Corvus, no Livro das Estrelas Fixas, de al-Ṣūfī.
A Gralha de Roma e da Grécia tornou-se al-Ghurāb na Arábia; mas em épocas mais antigas, quatro de suas estrelas eram ʿArsh al-Simāk al-Aʿzal, o Trono da Desarmada, referindo-se à estrela Spica. Estas naturalmente foram identificadas como as atuais β, γ, δ e η Corvi; mas al-Fīrūzābādī, como interpretado por Lach, afirmou que elas eram θ, κ, ψ e g Corvi; e as mesmas estrelas também compunham al-ʿAjuz al-Asad, os Quartos Traseiros do antigo Leão. Outros títulos anteriores para o conjunto eram al-Ajmāl,[viii] e al-Khibāʾ, a Tenda; esta geralmente qualificada por Yamaniyyah, do Sul, para distingui-la daquela no Cocheiro. Em vez de al-Ajmāl, Hyde citou, do Mudjizat,[ix] Ahmal, or Ḥamal, a Ovelha, mas isso não parece plausível aqui.

Tal como essas estrelas foram usadas pelos árabes para formar seu exagerado Asad, também o foram pelos hindus: elas eram Hasta, a mão do imenso Prajāpati — embora este título também seja usado para Órion e é bem mais conhecido neste caso. A cabeça da figura era marcada por Citrā, nossa Spica, e as coxas por Viśākhā, α e β Librae; enquanto Anūrādhā, β, δ e π Scorpii, formava os pés de Prajāpati. Incongruentemente, eles consideravam Niṣṭyā, ou Swāti, — nossa estrela Arcturus, — como o coração; mas como esta estava longe do lugar apropriado para tal órgão, William Whitney substituiu-a por ι, κ e λ Virginis do manzil e xiù. [x]

O Avesta menciona uma gralha estelar, Eorosch; mas desconhecemos como, se é que, esta coincidisse com o nosso; embora Hewitt acreditasse que nosso Corvo, sob o título Vanant, marcasse o quarto ocidental dos céus dos antigos persas.

Tampouco é evidente a razão da associação do Corvo com a Hidra, embora exista um mito eufrateano, de bem antes dos dias clássicos, acerca de um corvo monstruoso na ninhada de Tiamat, representada pela Hidra; e numa tabuinha há um título que poderia se aplicar ao nosso Corvo como o Grande Pássaro da Tempestade, ou Pássaro do Deserto, ao qual Tiamat deu sustento, tal como Arato descreveu Κόραξ bicando os segmentos do corpo da Hidra. As estrelas proeminentes do Corvo foram também identificadas com o acadiano Kurra, o Cavalo. Mais recentemente, ele foi ligado ao babilônico UGA.MUSHEN, Gralha, no catálogo conhecido como Mul.Apin.

Corvus, nas pranchas de Ignace Pardies.
Os hebreus a conheciam como ʿŌrebh, ou ʿŌrev, a Gralha; e os chineses, como uma porção de sua grande divisão celestial, o Pássaro Escarlate, mas o conjunto de suas estrelas marcava a mansão lunar Zhěn, a Carruagem.

Em épocas mais tardias, ele foi associada ao Corvo de Noé a voar acima das águas do Dilúvio, ou pousando sobre a Hidra, já que não havia terra seca para um local de descanso; ou com um daqueles que alimentaram o profeta Elias; mas Julius Schiller combinou suas estrelas com aquelas da Taça para formar a Arca da Aliança.

α, 4.3, laranja.

Alchiba, seu nome oficial, escrito no passado como Al Chiba, vem do título que os árabes do deserto davam à figura inteira, al-Khibāʾ, com o significado de Tenda; mas Ulugh Beg e os astrônomos arábios designaram-na como Minqār al-Ghurāb, o Bico da Gralha. No calendário de al-Akhṣāṣī al-Muwaqqit esse mesmo nome aparece escrito como Minkar al Ghurab, traduzido ao latim como Rostrum Corvi (Bico do Corvo).

Reeves identificou-a com o asterismo chinês Yòu Xiá, a Chaveta da Roda Direita da carruagem celestial Zhěn.

Embora designada pela primeira letra grega, ela é atualmente bem menos brilhante do que as quatro estrelas subsequentes, o que levou alguns a considerarem que seu brilho diminuiu desde os dias de Bayer, e que talvez ela tenha mudado de cor, pois al-Ṣūfī descreveu-a como vermelha.

β, 3.7, amarelo corado.

Recebeu em 2018 do WGSN da União Astronômica Internacional o nome Kraz, cuja etimologia e origem é desconhecida, embora figure no Atlas Coeli Skalnate Pleso, de Antonín Bečvář.

Na China, ela era Zhěn Xiù Sì, a Quarta Estrela da Carruagem.

γ, 2.3.

Gienah, seu nome, vem daquele registrado por Ulugh Beg: Janāḥ al-Ghurāb al-Ayman, a Asa Direita da Gralha, embora nas cartas modernas ela marque a esquerda. Em al-Akhṣāṣī al-Muwaqqit, esse nome está sob a forma Djenah al Ghyrab al Eymen e foi traduzido ao latim como Dextra ala Corvi. As Tábuas Afonsinas atribuem-lhe o título Algorab, que atualmente batiza a estrela δ.

γ é o membro mais brilhante da constelação, e alguns estudiosos chineses afirmavam que ela sozinha marcava o 28.o xiù,[xi] daí provavelmente um de seus nomes nesse país: Zhěn Sù Jù Xīng, a Estrela Separada da Carruagem.

δ, Dupla, 3.1 e 8.5, amarelo pálida e púrpura.

Algorab, seu nome oficial, vem do Catálogo de Palermo; Proctor escreveu-o como Algores. Em ambos os casos se trata de uma corruptela do nome da constelação, al-Ghurāb. Encontra-se na asa direita, no canto mais ao leste do quadrilátero. Seus componentes estão separados por 24.2″, num ângulo de posição de 214°; mas devido a sua cor, a secundária não é facilmente perceptível.

ε, 3.0, aparece em algumas listas modernas como Minkar, o Bico, do título árabe Minqār al-Ghurāb mencionado para α; mas este não é um nome oficial.

Todas as estrelas supramencionadas constituem o 13.o nakshatra,[xii] Hasta, a Mão, tendo Savitṛ, o Sol, como sua divindade regente; δ marca sua junção com Citrā, a mansão lunar seguinte.

O 28.o xiù, Zhěn, a Carruagem, anteriormente denominado Kusam, continha β, γ, δ e ε; mas, segundo alguns especialistas, somente γ. Esta, contudo, sempre foi a estrela determinante.

Essas mesmas estrelas (β, γ, δ e ε) formam um asterismo popularmente chamado nos Estados Unidos de Sail (Vela Náutica) ou Spica’s Spanker (Brigantina de Spica), pois o quadrilátero que delineiam lembra uma vela quadrada de bergantim.

Na China, η era Zuǒ Xiá, a Chaveta da Roda Esquerda da carruagem; e ζ, de magnitude 5.2 quase no limite da visibilidade, era estranhamente conhecida como Cháng Shā, — nome de um antigo reino chinês que textualmente significa “longo banco de areia” —, e Shòu Xīng, a Estrela da Longevidade.

Al-Bīrūnī escreveu que η,[xiii] β, γ e δ marcavam os Quartos Traseiros do monstruoso Leão dos primitivos árabes.


Notas de Rodapé (do texto original)


[1] Cabe apontar aqui que Apolo e Coronis estavam ainda mais intimamente ligados à Astronomia por serem os pais de Esculápio, que posteriormente se tornou o Ofiúco, o portador da Serpente.


Notas Explicativas da Tradução


[i] Trecho do Livro II das Metamorfoses, de Ovídio, na tradução ao português feita por David Jardim Júnior. Corresponde aos versos 587-588 desse mesmo livro no original latino: “(…) Mox alta per auras / evehor et data sum comes inculpata Minervae”. Allen usou a tradução de Joseph Addison: “Till, rising on my wings, I was preferred / To be the chaste Minerva's virgin bird”, e embora aqui introduzam a constelação do Corvo, os versos correspondem a fala da gralha — a ave de Minerva — para o corvo, que na lenda seria a ave de Febo.
[ii] Versos 243-244, do Livro II de Os Fastos, de Ovídio. Em tradução aproximada: “Três constelações são agrupadas juntas: o Corvo, a Serpente e a Taça, que jaz entre as outras duas”.
[iii] Versos 49-56 do poema How the Raven Became Black por John Godfrey Saxe, em tradução versificada nossa. Os versos originais dizem: “Then he turned upon the Raven, / 'Wanton babbler! see thy fate! / Messenger of mine no longer, / Go to Hades with thy prate! / 'Weary Pluto with thy tattle! / Hither, monster, come not back; / And — to match thy disposition — Henceforth be thy plumage black!' ”.
[iv] Referência aos versos 246-266, do Livro II de Os Fastos, de Ovídio.
[v] Não foi possível determinar com certeza quem seja esse Florus. Allen retirou a informação de Lallande (in Astronomie, vol. I, 1771, Paris: Desaint, pg. 277). O texto do Coelum Astronomico-Poeticum (1662, Amsterdã, pg. 177) de Caesius: L. Floro Avis Satyra sugere que seja Lúcio Aneu Floro, porém não fui capaz de encontrar o texto original.
[vi] Dionísio de Halicarnasso conta no Livro XV em Das Antiguidades Romanas que, quando os gauleses fizeram uma expedição contra Roma, um de seus chefes desafiou para um combate individual qualquer um dos romanos que não tivessem medo. Marco Valério, um dos tribunos e descendente de Valério Publícola, aceitou o desafio. Quando eles se enfrentaram, um corvo empoleirou-se no elmo de Valério e grasnou enquanto olhava ferozmente para o gaulês, e toda vez que este se preparava para desferir um golpe, o corvo avançava contra ele, ora rasgando suas bochechas com as garras, ora bicando seus olhos, de modo que o gaulês não conseguia investir contra seu inimigo nem se defender do corvo. O combate se prolongou por um longo tempo. O gaulês apontou sua espada para Valério, como se pretendesse enfiá-la através de seu escudo; foi então que o corvo voou em sua direção e arranhou-lhe os olhos; ele ergueu o escudo como se fosse afugentar o pássaro, abrindo a guarda ao romano, que dirigiu sua espada de baixo para cima e matou o gaulês. Por esse episódio, Valério recebeu o cognome Corvino.
[vii] Referência a Thompson, D. A., 1985, in A glossary of Greek birds, Oxford: Clarendon Press, pg. 93.
[viii] Allen dá a essa palavra o significado de Camelo, mas este seria al-Jamal (الجمل). Al Ajmāl (الاجمال) não está registrada no Arabic-English Lexicon de Lane. Ideler cita-a em Untersuchungen über den Ursprung und die Bedentung der Sternnamen, pg. 273: “Für الاجمال, El-adschmâl, welches im Berliner Codex des Kazwini ganz deutlich steht und sich auch beym Abdelrahman Sufi findet”, mas não lhe fornece o significado.
[ix] Provavelmente se trata de Mu’gjizât Pharsi, obra citada por Hyde em Veterum Persarum et Parthorum et Medorum religionis historia. Na transliteração usada aqui, seria Muʿjizāt (معجزات). Não encontrei a citação original.
[x] Não tive acesso à obra original de Whitney (On the Lunar Zodiac of India, Arabia and China). Philip Yampolsky, in The Origin of the Twenty-Eight Lunar Mansions, Osiris, vol. 9 (1950), pg. 62-83, dá uma pista sobre o assunto ao comentar que “the constellations or asterisms chosen to represent each mansion follow no pattern and frequently differ in each of the three systems” e que a mansão correspondente ao nakshatra definido por Arcturus era o xiù marcado por ι, κ, λ e μ Virginis e o manzil marcado por ι, κ e λ Virginis.
[xi] Para Allen, trata-se do 11.o xiù. Veja a nota [xii] em Andromeda, sobre a renumeração dos xiù em Allen.
[xii] Para Allen, trata-se do 11.o nakshatra. Veja a nota [xi] em Andromeda para entender a variação na numeração dos nakshatras.
[xiii] O texto de Allen não especifica que estrela é essa: “Al Bīrūnī said that with β, γ, and δ it marked the hind quarters of the monstrous early Lion”. A frase vem após a menção às estrelas η e ζ, nessa ordem. Supus que a estrela omitida seja η porque ,mais acima no mesmo capítulo, ela é listada juntamente com as três nesse mesmo contexto. Além disso, a estrela η está próxima de β, γ e δ no céu, ao contrário de ζ.

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