O Boieiro soltou seus impetuosos cães. [i]
Clytemnestra, de Owen Meredith.
CANES VENATICI
Conhecemo-los como Cães de Caça nos países que falam português, similar aos Chiens du Chasse, dos franceses, embora eles também o denominem Levriers (Lebreiros), tal como os italianos, com seu Levrieri. De significado idêntico ao nosso título e ao latino, temos o alemão Jagdhunde e o inglês Hunting Dogs. Situam-se entre o Boieiro e a Ursa Maior. Ptolomeu registrou suas estrelas entre as ἀμόρφωτοι desta última constelação, e suas formas atuais apareceram inicialmente no Prodromus de seu criador Hevelius.[ii] Aquele mais ao norte é Asterion, Estrelado, das pequenas estrelas que marcam seu corpo; e o outro, que contém as duas estrelas mais brilhantes, é Chara, como sendo Querida ao coração de seu mestre. Flamsteed seguiu-o no uso desses nomes, e os Cães posteriormente ganharam o reconhecimento dos astrônomos, como foi o caso da maioria das criações estelares de Hevelius, que geralmente foram dispostas onde era necessário.
O Boieiro solta os Cães de Caça em perseguição à Ursa, nessa representação de Hevelius. |
Proctor, em sua tentativa para simplificar a nomenclatura das constelações, chamou-os de Catuli, os filhotes; mas a ilustração usual mostra dois galgos presos por uma correia à mão do Boieiro, prontos para perseguir a Ursa ao redor do polo; seu inventor, assim, revivia a ideia de que o Boieiro fosse um caçador.
Hevelius contou 23 estrelas aí; Argelander, 54; e Heis, 88.
Os chineses designaram o aglomerado M 51 e duas estrelas próximas à cabeça de Asterion como Sān Gōng, as Três Excelências.
Assemani aludiu a uma figura quadrada no globo borgiano, sob a cauda da Grande Ursa, como al-Karb al-Ibl, o Fardo do Camelo, que não podem ser senão estrelas nas cabeças dos Cães de Caça.
Bartschius desenhou em seu mapa desta parte do céu o Rio Jordão, que denominou Jordania e Jordanus, o qual não é mais reconhecido, e de fato muito dificilmente lembrado. Seu curso ia de Cor Caroli, sob as Ursas e acima do Leão, Câncer e Gêmeos, através das estrelas a partir das quais Hevelius posteriormente formou o Leão Menor e o Lince, terminando na Girafa. Mas os contornos de sua corrente foram deixados um tanto indeterminados, muito semelhante ao das águas da África Central, quando conjeturados por cartógrafos na metade do século XIX. Este rio, no entanto, já existia antes de seu tempo em mapas estelares e globos franceses.
Constelação desusada do Rio Jordão, situada ao sul da Grande Ursa. |
α, dupla, 3.2 e 5.7, branco lívido e lilás pálido.
Esta estrela, 12 da lista de Flamsteed para os Cães, encontra-se isolada, marcando o colar de Chara. Ela não possuía nome até o século XVIII, quando se supõem ter sido destacada por Halley, à época Astrônomo Real, como uma constelação distinta Cor Caroli, Coração de Carlos, — e não Cor Caroli II como muitos o indicam, — em honra a Carlos II da Inglaterra. Conta-se que isso teria sido feito por sugestão do médico da corte, Sir Charles Scarborough, o qual afirmou que ela refulgiu com um brilho especial na véspera do retorno do rei a Londres, em 29 de maio de 1660. Mas recentemente Ian Ridpath apontou que a primeira aparição deste nome deu-se no mapa estelar de Francis Lamb, em 1673, quem a rotulou como Cor Caroli Regis Martyris, Coração de Carlos Rei Martirizado, indicando que era se referia a Carlos I da Inglaterra, executado durante a Guerra Civil Inglesa.
Ocasionalmente, é encontrada em mapas como o centro duma figura em forma de coração encimada por uma coroa, e seu nome foi incorporado às listas estelares populares; mas Flamsteed não o inseriu na prancha dedicada aos Cães de Caça, embora tenha escrito claramente sobre ele em seu manuscrito sob este título; e o Coração parece estar representado na parte de trás do prefácio do Atlas Coelestis.
Como nome de constelação, Cor Caroli foi traduzido ao francês como Coeur de Charles, ao italiano como Cuor di Carlo, e ao alemão como Herz Karls.
O Boieiro e seus Cães de Caça, na representação de Jamieson em 1822. Note que o Coração de Carlo é representado como uma constelação individual, acima de Chara, o cão mais austral. |
Em 2016, o WGSN da União Astronômica Internacional adotou oficialmente o nome Cor Caroli para a estrela mais brilhante do par binário: α2 Canum Venaticorum.
Para Ulugh Beg ela era al-Kabd al-Asad, o Fígado do Leão, — aqui um termo técnico que indica a posição mais alta de uma dada estrela abrangida por uma figura vista a partir do equador.[iii]
Na China, ela era a principal estrela do asterismo Cháng Chén, os Guardas Imperiais, que também incluía β e outras quatro estrelas dos Cães.
Ela marca o vértice norte do asterismo popularmente conhecido como Grande Diamante ou Diamante de Virgem.
É um objeto favorito entre amadores, pois seus componentes estão separados por cerca de 20". Em 1893, no Celestial Objects de Webb, Espin informava que essa separação já se vinha mantendo por mais de setenta anos, a despeito do grande movimento próprio de ambas, o que o levava a especular que se tratasse de estrelas isoladas, situadas a distâncias parecidas. Todavia, as medidas atuais de paralaxe empreendidas pelo satélite Gaia, nem como o movimento próprio comum e velocidade radial indicam que se trata de uma binária de longo período. Seu ângulo de posição atual é 229° e varia muito lentamente.
Na linha entre Cor Caroli e Arcturus, e um pouco mais perto desta última, num triângulo de pequenas estrelas, há um belo aglomerado globular bastante concentrado. Trata-se de NGC 5272, M 3, objeto conhecido há muito tempo, situado a 38,8 mil anos-luz de nós. É famoso por ter uma população de estrelas variáveis anormalmente alta, descoberta por Bailey em 1895, a partir de fotografias tiradas por astrônomos de Harvard em Arequipa, Peru. Atualmente conhecemos mais de 270 de suas estrelas variáveis, das quais cerca de 130 são variáveis do tipo RR Lyrae.
β, 4.3,
é Chara, do grego χαρά, Alegria. Na lista de Flamsteed é a 8, e, após Cor Caroli, a mais brilhante do Cão do Sul.
Y Canum Venaticorum, 5.5, vermelho.
La Superba foi assim denominada pelo padre Secchi do brilho soberbamente flamejante de seus raios prismáticos. É a mais brilhante de sua classe de estrelas com espectros do tipo IV,[iv] das quais apenas sete ou oito são visíveis a olho nu. É uma das estrelas mais vermelhas conhecidas, e sua atmosfera é bastante enriquecida em 13C. Sua variabilidade é semirregular, com período de aproximadamente 160 dias.
Dentre suas designações de catálogo, uma das mais conhecidas é Schjellerup 152.
Encontra-se a 7° para o norte e 2½° para o oeste de Cor Caroli.
Um ponto nebuloso nesta constelação pode ser visto com pequeno aumento a 3° a sudoeste de Al Kaid (η Ursae Majoris). Esta é a Nebulosa Espiral de Lorde Rosse, ou Galáxia do Redemoinho, anteriormente Nebulosa do Redemoinho, NGC. 5194, M 51. Aumentos maiores evidenciam uma das mais belas galáxias próximas, composta de um par de braços espirais que saem de extremidades opostas de um corpo central oval, — o bojo da galáxia —, com um dos braços unido a um segundo núcleo: a galáxia satélite NGC 5195.[v]
Notas Explicativas da Tradução
[i] Excerto do poema Clytemnestra in Meredith, O. 1855, Clytemnestra, The Earl's Return, The Artist, And Other Poems, Londres: Chapman & Hall, pg. 7. No original: “Bootes hath unleash'd his fiery hounds”.
[ii] Kunitzsch fornece uma explicação diferente e mais rica para a introdução desta constelação. Segundo ele, a ideia da existência de cães nesta região do céu vem dos tempos medievais, devido a um erro de tradução. O Boieiro possuía um asterismo que representava uma clava (em grego: κολλορόβος, kollorobos). Quando o Almagesto foi traduzido do grego ao árabe por Hunayn ibn Ishaq não conhecia a palavra grega e representou-a como uma palavra de som parecido em árabe para uma arma: al-ʿaṣā dhāt al-kullāb (العصا ذات الكلاب), que significa “bastão com um gancho”. Como as vogais não são obrigatoriamente marcadas em árabe, quando Cremonaeus traduziu esse texto ao latim, no século XII, teria confundido kullāb, “gancho”, com kilāb, cães, escrevendo hastile habens canes (“bastão que tem, ou mantém, cães”). Em 1533, Peter Apian representou o Boieiro com dois cães ao seu lado. Hevelius teria conhecido os cães desta forma e incorporou-os ao seu mapa estelar, dando-lhes notoriedade. Veja a nota [lxvii] no Boieiro, na qual Ideler interpretou essa mesma frase como um indicador às “hienas”: β, γ, δ e μ Bootis.
[iii] Não consegui encontrar a origem dessa afirmação acerta do uso de كبد, fígado, como um termo técnico para representar a posição de estrelas numa figura a partir de sua observação no equador.
[iv] Referência à antiga classificação estelar proposta por Angelo Secchi. Nesse esquema, os espectros estelares poderiam ser divididos em 5 classes. A classe IV corresponde ao que atualmente chamamos de estrelas carbonadas, aquelas de classe espectral C ou S, no esquema atualmente usado pelos espectroscopistas estelares.
[v] Allen escreveu esse parágrafo com a noção de que M 51 fosse uma nebulosa na qual um sistema planetário estivesse em formação — uma ideia comum em seu tempo, dado que apenas por volta de 1920 as nebulosas espirais foram reconhecidas como galáxias similares à Via Láctea. Ao traduzir, adaptei as frases ao conhecimento atual.
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