Uma menção deve ser feita ao que Smyth chamou de Escola Bíblica e os Mosaístas, os quais, em vários momentos, buscaram alterar as figuras celestes para outras tiradas da história sagrada e de sua interpretação. Começando com Beda, o Venerável, esta escola chegou aos nossos dias, mas seus esforços, felizmente, foram em vão; pois, embora seus motivos possam ter sido louváveis, nosso esquema dos grupos celestiais tem um valor histórico enorme e é uma fonte de instrução popular muito útil e interessante para que desejemos que seja descartado.
Entre estes iconoclastas estelares se encontrava o desafortunado Giordano Bruno do século XVI, que, em sua obra Spaccio della Bestia Trionfante, buscou substituir as antigas figuras pelas virtudes morais: a Lei, a Misericórdia, a Prudência, a Verdade, o Juízo Universal, a Sabedoria, etc.; e outros, mais numerosos no século XVII, foram Caesius, Jeremias Drexelius, Novidius, Postellus, Bartsch, Schickard, Harsdörffer e Julius Schiller de Augsburgo; enquanto em nossos dias o reverendo John Lamb, o versificador de Arato, e Proctor escreveram um tanto nas mesmas linhas. Os recentes esforços de Frances Rolleston e do reverendo Joseph A. Seiss são especialmente notáveis. Proctor fez mudanças nos nomes das constelações, embora tenha-se guiado pela velha tradição; mas suas mudanças não foram adotadas, e, assim diz Chambers, “eram muito mais bárbaras do que os originais que ele condenava”; de fato, em seus últimos trabalhos, ele abandonou tal proposta, tida como impraticável.
As seguintes observações do professor Holden [i] sobre a história da delineação de nossas figuras estelares são interessantes:
A contribuição de Albrecht Dürer à Astronomia é (...) desconhecida, creio eu, a todos os seus biógrafos.
Mas ele subsequentemente modifica essa declaração pela referência a Dürer: Geschichte seines Lebens und seiner Kunst, de Thausing [ii], na qual o trabalho deste artista com mapas é mencionado:
Hiparco (127 aC) e Ptolomeu (136 dC) marcaram as posições das estrelas por latitudes e longitudes celestes, e nomearam as estrelas assim arranjadas pela descrição de sua localização em alguma figura de constelação. Os globos celestes daqueles dias já se perderam, e temos apenas umas poucas cópias arábias deles, não mais antigas que o século XIII, tal que podemos dizer que as figuras de constelação originais estão completamente perdidas. As localizações das principais estrelas em cada uma das quarenta e oito constelações clássicas são verbalmente descritas por Ptolomeu. Na Bibliographie Astronomique de Lalande, descobrimos que em 1515 Albrecht Dürer publicou duas cartas celestes, uma para cada hemisfério, gravadas em madeira, nas quais as estrelas de Ptolomeu foram posicionadas por Heinfogel, um matemático de Nuremberg. As próprias estrelas foram conectadas por figuras de constelação desenhadas por Dürer. Estas figuras de constelação de Dürer, com poucas mudanças, foram copiadas por Bayer em sua Uranometria (1603); por Flamsteed no Atlas Coelestis (1729); por Argelander no Uranometria Nova (1843); e por Heis no Atlas Coelestis Novus (1872), e assim se tornaram clássicas.
É digno de congratulações que modelos destinados a serem tão duradouros tenham chegado até nós através das mãos de um mestre tão completo.
Eu adicionaria a isto que o catálogo de estrelas de Ptolomeu foi publicado em Colônia em 1537, infólio, com quarenta e oito ilustrações de Dürer.
[1]. É digno de menção um caso especialmente absurdo, embora não estritamente astronômico. Anna Brownell Jameson, em Sacred and Legendary Art, descreve, de uma antiga impressão francesa,
São Dinis, em Heliópolis, sentado no topo de uma torre ou observatório, contemplando, através de um telescópio, a crucificação de nosso Salvador vista à distância. [iii]
E muito do mesmo pode ser dito sobre a maioria de nossos autores. Pope assim traduziu erroneamente a alusão de Homero a Sírius:
rises to the sight
Thro' the thick gloom of some tempestuous night; [iv]
Henry Kirk White, em Time, tinha
Órion em sua torre ártica; [v]
Shelley, em The Witch of Atlas, escreveu sobre os planetas menores como
aquelas estrelas misteriosas
Que se escondem entre a Terra e Marte; [vi]
e, em Prince Athanase, assim ignorou o movimento aparente das estrelas:
muito acima das ondas do Sul, imóvel
O Cinturão de Órion paira; [vii]
Dickens, em Tempos Difíceis, fez o mesmo em sua descrição da morte de Stephen Blackpool, confortando o agonizante com uma estrela a refulgir intensamente por horas, iluminando o fundo da mina Old Hell Shaft. Nas próprias palavras do pobre homem:
Muitas vezes, ao voltar-me para mim e vê-la iluminar-me lá em baixo, em minha desgraça, ocorreu-me que ela fosse a estrela que guiou à casa de Nosso Salvador. [viii]
Carlyle, que chegou a desejar um emprego como astrônomo na Universidade de Edimburgo, assim aludiu, em sua História da Revolução Francesa, às cenas da noite de 9 de agosto de 1792 em Paris:
a noite (...) “está bela e calma”; Órion e as Plêiades reluzem serenamente, [ix]
embora, naquele dia, a primeira não tivesse nascido até a aurora; e novamente, ainda mais disparatado:
Acima, como de costume, a Grande Ursa gira mansamente ao redor do Boieiro; [x]
conquanto Dickens, em O Amigo Comum, cometeu talvez o pior erro de todos quando, ao descrever a viagem que “trouxe para casa o bebê Bella”, considera que uma revolução da Terra ao redor do Sol marca um mês em vez de um ano. Wallace, em Ben Hur, faz o xeque Ilderim dar nomes estelares implausíveis aos pais de seu grande time — Sírius, da odiada língua romana em vez do belo al-Shirā do deserto; e Mira, desconhecido a eles e, de fato, a qualquer um, por aproximadamente dezesseis séculos seguintes; enquanto o improvável nome grego Antares foi dado a um dos quatro vitoriosos. Já José de Alencar, em Iracema, imaginou índios do hemisfério sul que se guiavam pela Estrela Polar, sequer visível a eles.
Erros quanto à Lua e os planetas são notoriamente comuns, tais como fazer Vênus e a lua nova nascerem durante o pôr do Sol. Shakespeare, não obstante ser contemporâneo de Galileu e Kepler, comete muitos desses; no entanto, parece ter conhecimento da ação da Lua — seu “regente das cheias” [xi] — sobre as marés [2], pois encontramos em Hamlet:
o astro úmido
Sobre a influência do qual se ergue o império de Netuno; [xii]
e, em Henrique IV,
sermos governados da mesma maneira que o mar. [xiii]
Marryat, embora fosse capitão do mar, escreveu sobre uma lua minguante vista no começo da noite [xiv]; e H. Rider Haggard fez algo parecido em As Minas do Rei Salomão — um livro que, a propósito, chegou a ser encomendado pela biblioteca de uma escola de mineralogia! Charles Wolfe, em seu The Burial of Sir John Moore after Corunna [xv], diz que este ocorreu
À luz brumosa dos esforçados raios dos luar, [xvi]
muito embora a Lua não tenha brilhado àquela noite, brumosa ou não; e Coleridge, em A Balada do Velho Marinheiro, tinha
A lua cornuda com uma estrela brilhante
Dentro da ponta inferior. [xvii]
A astronomia apresentada pelos jornais atuais é notoriamente ridícula, não fosse o fato de ser lamentável tamanha ignorância disseminada.
Autores clássicos empregavam muito mais alusões estelares do que os de nossos dias; de fato, Quintiliano, do nosso século I, em sua Instituição Oratória, insistiu que o conhecimento da astronomia seria absolutamente necessário a uma compreensão adequada dos poetas. E essas alusões geralmente estavam corretas, ao menos aos dias deles.
O mesmo pode ser dito de Dante, cuja profunda familiaridade com a ciência estelar do século XIV transparece por toda a sua obra — a bem dizer, o Paraíso pode ser considerado um esquema poético para o sistema ptolomaico; e foi muito bem escrito a respeito de Milton, “o historiador-poeta da astronomia de seus dias”, que em astronomia a precisão de seus fatos divide as honras com a beleza de sua língua; mas ele escorregou quando situou Ofiúco “no céu ártico” [xviii], e só tardiamente em sua obra vemos o abandono das teorias ptolomaicas.
Tennyson fez muitas belas alusões a estrelas e planetas, e é sempre preciso, a menos que excetuemos seu “Marte sem lua”, o qual, entretanto, foi antes da descoberta de Asaph Hall; enquanto nossos Longfellow e Lowell conheciam bem as estrelas e tal mostraram em suas obras.
Notas de Rodapé (do texto original)
[1] Este é especialmente o caso da Lua, que é raramente posicionada ou desenhada de forma correta.
[2] Dante mostra conhecimento similar em Paraíso, Canto XVI, vv 82-83. (Nota do Tradutor: “E come 'l volger del ciel de la luna / cuopre e discuopre i liti sanza posa”. Na tradução versificada de José Pedro Xavier Pinheiro: “E como a Lua, sem cessar girando / Cobre ou descobre as praias do oceano”.)
Notas Explicativas da Tradução
[i] Contributions of Raphael and of Albrecht Dürer to Astronomy, por Edward S. Holden, Publications of the Astronomical Society of the Pacific, vol. 2, 1890.
[ii] Allen chama esta obra de Life of Dürer. Porém, o título da obra na tradução inglesa é Albert Dürer, his life and works. Preferi usar o título do orginal alemão no texto.
[iii] Anna Boswell Jameson, Sacred and Legendary Art, vol. 2, pg. 336.
[iv] Trecho dos versos 37-38 do Livro XXII de A Ilíada, na versão traduzida para o Inglês por Alexander Pope. Esse trecho faz parte da seguinte quadra, necessária para a compreensão da crítica: “Not half so dreadful rises to the sight, / Thro' the thick gloom of some tempestuous night, / Orion’s dog (the year when autumn weighs), / And o’er the feebler stars exerts his rays”. Allen aponta que a metrificação e liberdade poética de Pope não apenas descaracterizaram o contexto da alusão de Homero a Sírius (a estrela mais brilhante dentre todas, comparada ao brilho que Aquiles irradia aos olhos de Príamo), mas também delinearam um cenário astronômico bastante incorreto. No texto original, a alusão de Homero a Sírius encontra-se nos versos 25-29 do Livro XXII:
Compare a tradução de Pope acima com outras em Inglês, bem mais fiéis ao original:
Him, first, the ancient King of Troy perceived / Scouring the plain, resplendent as the star / Autumnal, of all stars in dead of night / Conspicous most, and named Orion's dog; (William Cooper; 1870. vv. 29-32)
King Priam was first to note him as he scoured the plain, all radiant as the star which men call Orion's Hound, and whose beams blaze forth in time of harvest more brilliantly than those of any other that shines by night; (Samuel Butler; 1898)
Him the old man Priam was first to behold with his eyes, as he sped all-gleaming over the plain, like to the star that cometh forth at harvest-time, and brightly do his rays shine amid the host of stars in the darkness of night, the star that men call by name the Dog of Orion. (Augustus Taber Murray; 1924)
Mesmo a tradução para o Português, feita por Manoel Odorico Mendes, é mais fidedigna que a de Pope: Já nele avista Príamo essa estrela / Cão de Órion nomeada, que, nascida / No outono, os astros vence em noite bruna.
25 | τὸν δ᾽ ὃ γέρων Πρίαμος πρῶτος ἴδεν ὀφθαλμοῖσι |
---|---|
παμφαίνονθ᾽ ὥς τ᾽ ἀστέρ᾽ ἐπεσσύμενον πεδίοιο, | |
ὅς ῥά τ᾽ ὀπώρης εἶσιν, ἀρίζηλοι δέ οἱ αὐγαὶ | |
φαίνονται πολλοῖσι μετ᾽ ἀστράσι νυκτὸς ἀμολγῷ, | |
ὅν τε κύν᾽ Ὠρίωνος ἐπίκλησιν καλέουσι. |
Him, first, the ancient King of Troy perceived / Scouring the plain, resplendent as the star / Autumnal, of all stars in dead of night / Conspicous most, and named Orion's dog; (William Cooper; 1870. vv. 29-32)
King Priam was first to note him as he scoured the plain, all radiant as the star which men call Orion's Hound, and whose beams blaze forth in time of harvest more brilliantly than those of any other that shines by night; (Samuel Butler; 1898)
Him the old man Priam was first to behold with his eyes, as he sped all-gleaming over the plain, like to the star that cometh forth at harvest-time, and brightly do his rays shine amid the host of stars in the darkness of night, the star that men call by name the Dog of Orion. (Augustus Taber Murray; 1924)
Mesmo a tradução para o Português, feita por Manoel Odorico Mendes, é mais fidedigna que a de Pope: Já nele avista Príamo essa estrela / Cão de Órion nomeada, que, nascida / No outono, os astros vence em noite bruna.
[v] V. 3 do poema Time, de Henry Kirk White. No original: “Orion in his Arctic tower”.
[vi] Versos 71-72 do poema The Witch of Atlas, de Percy Shelley. No original: “those mysterious stars / Which hide themselves between the earth and Mars”.
[vii] V. 196 do poema Prince Athanase, de Percy Shelley. No original: “far o'er southern waves, immovably / Belted Orion hangs”.
[viii] No original: “Often as I coom to myseln, and found it shinin on me down there in my trouble, I thowt it were the star as guided to Our Saviour's home”.
[ix] The French Revolution: A History, vol. 2, pg. 91. No original: “the night (...) "is beautiful and calm"; Orion and the Pleiades glitter down quite serene”.
[x] The French Revolution: A History, vol. 2, pg. 19. No original: “Overhead, as always, the Great Bear is turning so quiet round Bootes”. Allen aponta o disparate da afirmação, uma vez que tanto a Ursa Maior quanto o Boieiro giram em torno da Estrela Polar.
[xi] Trecho da fala de Titânia, em Sonhos de uma Noite de Verão, Ato II, Cena I, v. 88. No original: “governess of the floods”. Na tradução de Nélson Jahr Garcia: “que o vasto mar impera”.
[xii] Trecho da fala de Horatio, em Hamlet, Ato I, Cena I, vv. 117-118. No original: “the moist star / Upon whose influence Neptune's empire stands”.
[xiii] Trecho da fala do Príncipe Henrique, em Henrique IV, Parte I, Ato I, Cena II, v. 28. No original: “being governed as the sea is by the moon”. Usei a tradução de Carlos A. Nunes.
[xiv] Provavelmente essa alusão corresponde à frase “The night was clear, and the stars shown out brilliantly as the light craft skimmed over the water, and a fragment of a descending and waning moon threw its soft beams upon the snow-white sail”, do livro Mr. Midshipman Easy, de Frederick Marryat. Há um erro grosseiro pois uma lua minguante (waning moon) não se põe (descending) durante a noite (The night was clear).
[xv] Allen refere-se a um título abreviado desse poema e usa parte do nome da obra como se fosse seu próprio texto, anotando-o com a data do evento: “in his Burial of Sir John Moore after the battle of Corunna, January 16, 1809”.
[xvi] Trecho do poema The Burial of Sir John Moore after Corunna, de Charles Wolfe. No original: “By the struggling moonbeams' misty light”. Allen aponta que, no dia da Batalha da Corunha, a lua era nova e, portanto, não podia ter iluminado o sepultamento.
[xvii] Versos 210-211 do poema The Rime of the Ancient Marine, de Samuel Taylor Coleridge. No original: “The horned moon with one bright star / Within the nether tip”. Na tradução versificada de Adriano Scandolara: “Até que a Lua sobe ao longe no oriente, / Nos cornos envolvendo estrela refulgente”. Noutra tradução versificada, feita por Alípio Correia de Franca Neto: “E a Lua cornífera, a se alçar a / Leste, com uma estrela clara / Na ponta inferior”. Allen aponta que é impossível uma estrela ser vista dentro da área delimitada pelos cornos da Lua (em fase crescente ou minguante), posto que a parte não iluminada da Lua, nessas fases, continua a ocultar as estrelas que se encontram atrás, na esfera celeste. Curiosamente, em um artigo publicado mais de meio século depois (The Observatory, v. 70, p. 77, 1950), o astrofísico e tenente-coronel Frederick Stratton liga esses versos de Coleridge a relatos de presságios e fenômenos similares avistados entre os séculos XVI e XIX, inclusive por astrônomos treinados (tais como Nevil Maskelyne e William Herschel, o qual julgou ver uma erupção de vulcão lunar). Alguns desses relatos podem ter tido origem em fenômenos lunares transientes.
[xviii] Trecho dos vv. 709-710 do Canto II, de Paraíso Perdido. No original: “That fires the length of Ophiucus huge / In the Arctic sky”. Na tradução versificada de António José de Lima Leitão: “Tal de Ofiúco os sidéreos campos vastos / No ártico pólo inflama”. Ofiúco é uma grande constelação equatorial; apenas uma pequena parte de sua figura pode ser avistada no céu do ártico, muito rente ao horizonte.
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