Antinous


Pairar sonhei que via no ar sereno
De áureas plumas uma águia, que mostrava
Querer baixar, das asas pelo aceno.
Estar eu na montanha imaginava,
Onde os seus Ganimede abandonara
Alado à corte excelsa, que o esperava. [i]
Trecho do Canto IX do Purgatório, de Dante.


ANTINOUS

Antínoo jaz na Via Láctea, diretamente ao sul da estrela Altair; estando a cabeça da figura nas estrelas η e σ, e o resto do traçado marcado pelas θ, ι, κ, λ, ν e δ, todas na Águia. Flamsteed omitiu σ e ν de seu catálogo, mas adicionou ι.

Aquila vel Antinous, na representação de Hevelius.
Estátua de Antínoo,
no Museu Arqueológico
de Delfos.
Supõe-se que a constelação tenha sido introduzida no céu no ano 132, pelo imperador Adriano, em honra ao seu jovem bitínio favorito, cuja alma seus cortesãos disseram-lhe brilhava na lúcida dessa constelação, após o autossacrifício do jovem, que se afogou no Nilo por crer que dessa forma a vida de seu mestre seria prolongada. Isso ocorreu porque o oráculo em Beza assegurou que apenas pela morte do que o imperador mais amava um grande perigo a ele poderia ser impedido. O novo asterismo, contudo, era muito pouco conhecido entre os astrônomos da antiguidade; e embora Ptolomeu tenha aludido a ele, fê-lo de modo muito ligeiro, chamando meia dúzia das αμόρφωτοι da Águia ἐφ ὡν ὁ ἀντίνοος.

Antinous, no Vorstellung der Gestirne,
de Bode
Após essa época, ela seguiu ignorada até Mercator a incluir em seu globo celeste de 1551 com seis componentes; Bayer o seguiu, ilustrando-a junto à Águia, embora sem uma lista própria de estrelas. Tycho também a utilizou; mas ela apareceu pela primeira vez isolada em uma obra impressa numa prancha do Stella Nova de Kepler, em 1606, e em suas Tábuas Rudolfinas. Longomontanus (Christen Sørensen Longberg, da Dinamarca) tinha-a em sua Astronomia Danica de 1640; Hevelius a incluiu em seu Prodromus, mas adicionou um Arco e Flecha, a antiga Sagitta [ii]; Flamsteed mencionou-a em sua Historia Coelestis como Aquila Antinous, Aquila vel Antinous e Aquila cum Antinoo; e o abade jesuíta húngaro Maximilian Hell fez constante uso dela em sua Ephemerides Astronomicae [iii] de 1769 e 1770. Bode também a catalogou distintamente e a ilustrou; mas Argelander omitiu-lhe o título em sua Uranometria Nova de 1843, embora a mostre como parte da Águia. Atualmente ela é pouco reconhecida, estando suas estrelas incluídas entre aquelas da Águia.

Bayer usou Ganymedes em vez de Antinous, e outros usaram indiscriminadamente ambos os nomes. Tennyson escreveu sobre o jovem:

Do acanhado Ganímede a coxa
Rósea presa à garra da Águia. [iv]

Este mesmo nome foi usado ocasionalmente para designar a constelação de Aquário, mas foi dado por Lalande, com muitos outros títulos, para nosso Antínoo; entre esses temos Puer Adrianaeus (Menino de Adriano), Bithynicus (Bitínio), Phrygius (Frígio) e Troicus (Troiano); Novus Aegypti Deus (Novo Deus Egípcio); Puer Aquilae (Menino da Águia); Pincerna (Copeiro) e Pocillator (Portador da Taça).

Caesius viu nele o Filho da Sunamita ressuscitado pelo profeta Eliseu [v]; e Lalande informa que alguns identificaram-no com o itacense ousado [vi], um dos pretendentes de Penélope mortos por Ulisses.

Dois dos globos árabes trazem as estrelas δ, θ, κ e λ Aquilae, que marcam o quadrilátero característico de Antínoo, como al-Ẓalīmayn, os Dois Avestruzes; porém Ideler assinala esse título apenas à ι e λ, apontando δ, η e θ como al-Mīzān, a Escala da Balança. Simone Assemani informa que elas eram Alkhalīmayn, cuja escrita correta seria al-Khalīlayn, os Dois Amigos, ou al-Ḥalīmātayn, as Duas Papilas; mas suas afirmações acerca de nomes de estrelas são muitas vezes criticadas desfavoravelmente por Ideler como “uma mistura confusa, reunida sem muito critério”. [vii]

Esses globos são tão frequentemente citados como um indicativo da reputação e progresso da Astronomia na Arábia, que posso me perdoar uma breve digressão acerca deles.

Globo celeste almorávida, do século XI,
atualmente em Florença.
Um deles, do ano 1225, atualmente se encontra no museu criado pelo Cardeal Bórgia em Velletri; um outro, de 1289, está no Mathematisch-Physikalischer Salon em Dresden; A. V. Newton reivindica uma data antiga no século XI para um que está anotado com caracteres arabo-cúficos, atualmente na Biblioteca Nacional de Paris, bem como o faz Ferdinando Meucci para outro em Florença; um outro, de bronze, dos tempos arábios,[viii] com estrelas representadas por pequenos discos de prata, mas não ilustrado com figuras, encontra-se na sede da Royal Astronomical Society em Londres; e conta-se que o Imperador Frederico II do Sacro Império Romano-Germânico, no século XIII, teve um feito de ouro, com estrelas representadas por pérolas incrustradas. Todos esses parecem ter dimensões relativamente pequenas, de 13 a 20 centímetros de diâmetro, em comparação com o globo de 1,6 m de Tycho Brahe.[ix] Os globos de Mercator tinham cerca de quarenta centímetros de diâmetro.

Mas os globos celestes já eram conhecidos em épocas ainda mais antigas. Um que é considerado bastante correto com respeito à localização das constelações primitivas, embora não mostre estrelas individuais, encontra-se na coleção Farnese de antiguidades, encimando a estátua de Atlas. Esse globo, supostamente uma cópia de esfera de Eudoxo, e possivelmente anterior a Ptolomeu, embora um tanto desformado, preservou para nós mais de quarenta das figuras celestes de sua época; enquanto outro, de bronze, que se supõe ter sido construído pelo próprio Ptolomeu, — sem dúvida uma afirmação apócrifa, — foi encontrado em 1043 numa antiga biblioteca pública em Kahira, a moderna Cairo. Ptolomeu descreveu o globo de Hiparco, que ilustra o frontispício do segundo tomo da edição bilíngue grego-francês da Syntaxis, traduzida por Nicholas Halma e publicada em Paris em 1816. Conta-se que Eudoxo construiu um em 366 aC, assim como o fez Anaximandro de Mileto em 584 aC.

Atlas Farnésio, estátua que exibe a esfera de Eudoxo, no Museo Archeologico de Nápoles
Crédito da imagem: Sailko/Wikicommons.

Credita-se a invenção real dos globos celestes a Tales. Já a mítica, a Atlas; mas Flammarion quase rivaliza com esta última quando discorre acerca da esfera de Quíron — “a mais antiga esfera conhecida, construída à época da Guerra de Tróia, c. 1300 aC”; e Sir Isaac Newton, induzido por uma tradução incorreta de Diógenes Laércio, asseverou que Musaeus, um dos tripulantes da nau Argo, foi quem primeiramente construiu um globo para representar a esfera celeste,[x] sobre a qual ele figurou a nau e muitas outras das constelações gregas derivadas da história dos Argonautas.


Notas Explicativas da Tradução


[i] Versos 19-24 do Canto IX, do Purgatório, na Divina Comédia de Dante. A tradução é de José Pedro Xavier Pinheiro. Allen usa a tradução inglesa de Longfellow. No original, em italiano: in sogno mi parea veder sospesa / un’aguglia nel ciel con penne d’oro, / con l’ali aperte e a calare intesa; / ed esser mi parea là dove fuoro / abbandonati i suoi da Ganimede, / quando fu ratto al sommo consistoro.
[ii] Allen informa que essa Flecha corresponderia à primitiva constelação Sagitta (Flecha) ou parte dela. Essa informação é um tanto estranha posto que a Flecha é uma das 48 constelações reconhecidas por Ptolomeu e fica ao norte da Águia, enquanto Antínoo e seu arco ficam ao sul. A despeito disso, a inclusão de um arco e flecha na mão de Antínoo por Hevelius criou uma interessante relação com Sagitta, nos mapas celestes ilustrados.
[iii] O nome completo desta obra é Ephemerides astronomicae ad meridianum Vindobonensem, um anuário do Observatório de Viena, publicado por Hell de 1756 a 1793.
[iv] Trecho dos versos 121-122 do poema The Palace of Art, do Lorde Arthur Tennyson. Tradução versificada nossa. No original: Flush'd Ganymede, his rosy thigh / Half buried in the Eagle's down.
[v] Referência a II Reis, 2, 14-37
[vi] Referência à Odisseia, de Homero. Este pretendente, proveniente de Ítaca, também se chamava Antínoo e era considerado por Penélope o mais orgulhoso e maligno dentre os que a cortejavam.
[vii] As informações de Assemani encontram-se na obra Globus Caelestis Cufico-Arabicus Veliterni Musei Borgiani, pag. CXXIV: “In triangulo concluduntur sex informes Aquilæ. Ex his stellis ita geminæ prænotantur الخليمين Alkhalimain, idest duo amici, vel الحلمتين Alhalimetain, duæ papillæ.” Segundo as regras de romanização da escrita arábica usada neste livro, a primeira palavra indicada por Assemani seria lida como Alkhalīmayn. Sua tradução como “Dois Amigos” provavelmente não está correta; essa palavra não está nos dicionários consultados. Mesmo Allen aponta para isso ao informar que ela deveria ser escrita como الخليلين para ser compatível com a tradução apresentada. Já a outra tradução (Duas Papilas) deveria corresponder a الحليماتين e não a الحلمتين, que se distinguem uma da outra por duas vogais longas. A crítica de Ideler à mistura sem critérios de etimologias árabes feitas por Assemani é aparente nestes erros de tradução e ortografia, além da implausibilidade do nome “Duas Papilas” para estrelas.
[viii] Estima-se que este globo seja do século XVII. Sua construção mais recente já tinha sido apontada por Richard Wellesley Rothman em 1840 (On the Arabic Globe belonging to the Society, Memoirs of the Royal Astronomical Society, vol. 12, p.381): “A posição dos coluros indica que o globo é de construção recente; mas as estrelas não foram posicionadas com acurácia suficiente para permitir uma boa determinação da época que ele se propõe a representar”. Há um outro globo, datado de 1275, no British Museum, não mencionado por Allen.
[ix] No texto original, Allen menciona erroneamente que esse globo se encontra num castelo (inespecífico) em Praga. Na verdade, o globo encontrava-se na Universidade de Copenhague quando foi destruído em 1728, pelo grande incêndio que assolou a capital dinamarquesa (ver Chant, 1950, Notes and Queries — Tycho Brahe's Great Globe, in Journal of the Royal Astronomical Society of Canada, vol. 44, p. 124).
[x] Em The Chronology of Ancient Kingdoms Amended, Newton buscou datar os tempos antigos a partir de informações comparadas de diversas fontes, incluindo notas astronômicas presentes nos poemas clássicos de Arato e Eudoxo. Nessa obra — que foi publicada postumamente e recebida com muita crítica —, figuras clássicas da mitologia, como Quíron e os Argonautas, são tratadas como fatos históricos. Para Newton, mesmo tendo sido Quíron quem criou um sistema de sinalização com base nas estrelas para auxiliar a navegação dos argonautas, teria sido seu discípulo Musaeus quem construiu do primeiro globo celeste; para uma extensa discussão sobre o tema ver Buchwald & Feingold (2012, Newton and the Origin of Civilization, Princeton University Press, pp. 247-248). A informação de Flammarion sobre a antiga esfera de Quíron deve ter sido inspirada nas mesmas obras clássicas usadas por Newton.

Nenhum comentário:

Postar um comentário